(Texto publicado na Revista de Estudos Japoneses, USP, n. 31, 2011)
Camilo Pessanha, Venceslau De Morais e o “Fonógrafo”
Este artigo procura demonstrar as
relações entre a crônica publicada por Wenceslau De Moras (1854-1929),
intitulada “A Primavera”, e o poema “Fonógrafo”, de Camilo Pessanha
(1867-1926), que faz parte do único livro lançado pelo poeta português (Clepsydra, de 1920). A comparação propõe
novas leituras do poema, e procura contribuir, também, para os estudos acerca do
influxo budista na obra de Pessanha.
Palavras-chave: Camilo Pessanha (1867-1926). Venceslau De
Morais (1854-1929). Budismo. Clepsydra. 1920.
Camilo Pessanha, Wenceslau De Moraes
and the “Phonographo”
This article means to clarify the relationship between
“A Primavera”, a text written by Venceslau De Morais (1854-1929), and the poem
“Fonógrafo”, written by Camilo Pessanha (1867-1926), presenting, also, new
readings for the poem, and contributing to the studies about the Buddhist
strains of Pessanha´s work.
Keywords: Camilo Pessanha (1867-1926). Wenceslau De Moraes
(1854-1929). Buddhism. Clepsydra. 1920.
Toda essa extensa pista – para quê?
Se ha-de vir apagar-vos a maré,
Como as do novo rasto que começa...
As pegadas na
areia. Camilo Pessanha (1867-1926) tinha uma notória obsessão por “marcas”, por
“registros”, com que pudesse ter a ilusão de deter a passagem do tempo, dos
instantes. Como não recordar, agora, dos versos: “Imagens que passais pela
retina / Dos meus olhos, por que não vos fixais?” A ânsia de fixar o tempo, com
o objetivo de olhar, mais demoradamente, as coisas queridas, não acreditamos
que se deva meramente a uma maneira impressionista
de se expressar. O Impressionismo pictórico vigorava, é claro, em sua época, mas,
acreditamos que Pessanha, poeta autêntico, visceralmente ligado ao que
demandava em seus versos, compartilhava de uma mesma melancolia impressionista, não sendo, portanto, um pastiche. Havia, como acreditamos, um
“sentimento de época” impressionista; e procuraremos elucidar esse “sentimento”,
brevemente.
A fugacidade da
vida, um dos temas mais caros à filosofia – se não o tema filosófico em si
–, nunca havia ficado tão evidente, quanto na época da pintura impressionista.
O que a arte pictórica tinha feito, até então, no sentido de “eternizar” os
instantes, fornecendo a ilusão de “permanência”, o Impressionismo pôs-se a
derruir, reproduzindo, até mesmo, o “olhar repentino” do pintor – que é,
também, o “olhar repentino” do espectador... A fixação e a demora se viram
substituídas pelo soslaio e pela pressa. E os eventos efêmeros tomaram o lugar dos eventos eternos. Conjugada ao tema “proustiano”
da “decadência aristocrática”, essa efemeridade da vida vulgar, reproduzida em
arte, adquiriu matizes de uma melancolia profunda, que não parecia existir, por
exemplo, no retrato de um monarca, mas que existe, em profusão, no retrato de
uma pobre lavadeira; isso porque os doces momentos de uma vida vulgar passam
irremediavelmente, o que a fotografia e a pintura “realistas” tornaram mais
acentuado, ao passo que a “eternidade” de um monarca, em pé, em seu gabinete,
permanece “fria”, como a sua personalidade...
Pintar o “real”
nunca havia nos oferecido tanta gama de emoções relativas à passagem do tempo.
Mesmo uma pintura de Brueghel (c. 1550),
com as suas feiras e festas, ainda nos oferece uma espécie de metáfora, pela
qual adivinhamos um sentido “maior”, comunicando algo a respeito da vida humana
permanente (ou, cíclica). E um pintor
como Vermeer (c. 1650) não cremos ter
atingido, com os seus retratos do cotidiano, o mesmo grau de dor pela passagem do tempo que as
pinturas de Monet ou de Renoir nos despertam.
Efeitos de uma
técnica pictórica que envolve em “fumaças” as figuras de jovens e crianças?
Talvez. Efeitos de um prosaísmo, muito acentuado, das figuras representadas?
Pode ser. Efeitos de uma “prosificação” da “vida cotidiana”, mais acentuada no
final do século XIX, do que em meados do século XVII? É bem provável. Pois, as
figuras impressionistas estão já quase ausentes do que era aristocrático, e
quase já despidas dos fatos e adereços, que, hoje, chamamos “enfeites”. São
figuras tanto mais banais quanto mais tristes, e isso por efeito de um elemento
fundamental: o amor. Um amor
romântico, ainda, que habita a profundidade dos jardins de Monet, como uma presença, e que habita os olhos pintados
por Renoir como um “brilho macio”. Há amor,
nas representações impressionistas; e esse “romantismo da vida real” torna as suas
figuras três vezes mais doloridas de se verem passar...
A fantasmagoria
aristocrática dos prelúdios e das
canções de Débussy; a poesia “simbolista” de Mallarmé (que as aspas distinguem
do escreveu de mais “moderno”, como, por exemplo, o “Lance de dados”) parecem
comunicar a mesma espiritualização da
vida que o sfumato da técnica
impressionista nos sugere – malgrado a inexatidão desse termo técnico. Dizia Mallarmé,
em “Crise do verso”: que era maravilhoso ver um objeto “desfazer-se em
vibrações”, desaparecer em ondas; ou, em outras palavras, espiritualizar-se (MALLARMÉ, 1945, p. 368). E quantas dessas
figuras esvoaçantes, espiritualizadas, despidas de um envoltório carnal, não
habitam a poesia de Camilo Pessanha, que clamava: “Oh vem, de branco, do imo da
folhagem! (...)”.
Quem era essa presença, afinal?... Que parentesco não
tem com as “almas”, de sombrinha à mão, que passeiam pelos vastos campos, nas
pinturas de Monet?...
Mas, a fugacidade
do tempo, a efemeridade da vida, a permanência “vibratória” dos objetos reais que
partiram, todos são apenas introdução ao nosso assunto principal; e, as
obsessões de Camilo Pessanha pela fixação dos instantes, somente o prelúdio do
que diremos a respeito de seu poema “Fonógrafo”, publicado, pela primeira vez,
em 1899, mas, segundo seu autor, escrito em 1896 (PESSANHA, 1994, p. 194).
Vae declamando um comico defunto,
Uma platêa ri, perdidamente,
Do bom jarreta... E ha um odôr no
ambiente
A crypta e a pó, – do anachronico
assumpto.
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lirios, lirios, aguas do rio, a lua...
Antes o Seu corpo o sonho meu fluctua
Sobre um paúl, – extática corolla.
Muda outra vez: gorgeios, estribilhos,
D´um clarim de oiro – o cheiro dos
junquilhos,
Vivido e agro! – tocando a alvorada...
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã. Que effluvio de
violetas!
Para estampar o
poema, escolhemos a grafia preferida do autor, assim como se estampa na
primeira edição da Clepsydra (1920).
Sabemos que Camilo Pessanha preferia, por questões estéticas, a escrita
“etimológica” à meramente “fonética”, já que
(...) as palavras escritas na sua forma
mais arcaica possuem [o poder de] acordar no espírito, dispostas em sucessivos
planos, e como que fazendo fundo à idéia que cada uma delas traduz, as imagens
das coisas desaparecidas a que essa significação andou associada” (“Literatura
chinesa”, conferência proferida em 1915, In: PESSANHA, 1993, p. 60).
Indubitavelmente,
a grafia antiga, tal como foi preservada, apesar das reformas ortográficas de
1911, acentua a atmosfera “empoada” e “velha” dos versos, na primeira estrofe, assim
como acentua a estranheza e o aspecto onírico das “paisagens”, nas estrofes
seguintes.
Muitas foram as
interpretações que se deram ao poema. Para Nuno Júdice, por exemplo, em
introdução à edição fac-similada da revista Centauro
(1916), Pessanha
vem contestar uma ordem do mundo antiga
para propor uma nova visão. Essa ordem contestada é a do Romantismo na sua fase
de degradação cujos elementos surgem na primeira quadra: perdida a sinceridade,
a adequação referencial, o Romantismo torna-se teatral, no sentido de mover os
seus personagens num palco em que são visíveis os cordéis (o deus ex-machina)
exteriores à ação (...) Pessanha vem, portanto, anunciar o fim do Romantismo
pela denúncia da convenção público-autor. A platéia já não acredita nem pode
aceitar a falsa representação que lhe é fornecida e, por isso, ri-se do “cômico defunto”, o que amplifica o
efeito ridículo da situação. (JUDICE, 1982, p. 11 e 12).
Essa interpretação
é bastante perspicaz, colocando o poema como peça crítica de um Romantismo
estertorante, nos finais do século XIX; um Romantismo “cadavérico” daria lugar,
então, a uma renovação, representada,
na segunda estrofe do poema, pela ascensão da lua; e essa renovação, é claro, estaria ligada, ou ao Simbolismo, ou a qualquer forma nova
de arte, da qual Pessanha seria um dos anunciadores...
As interpretações,
por mais coerentes, sempre têm de se confrontar com dados documentais, o que
não as invalida, de forma alguma, devido à natureza própria das obras poéticas.
Em nosso caso, o dado documental vem a partir de uma resenha, publicada em
1970, por Pedro da Silveira, que criticava, então, o lançamento da quarta
edição do livro de Pessanha, preparada por João de Castro Osório (1899-1970).
Nessa resenha, a crônica “A Primavera”, de Wenceslau de Moraes (1854-1929), é
apontada como a fonte do poema de
Pessanha; e resolvemos investigar essa curiosa filiação...
Wenceslau de
Moraes (ou, Venceslau de Morais), oficial da Marinha portuguesa, foi colega de
Camilo Pessanha, durante uma rápida passagem, como professor do Liceu de Macau
(China). Em 1888, partiria, definitivamente, para o Japão, a exercer funções
diplomáticas, vindo a falecer, em idade avançada, na cidade de Tokushima. Destacou-se
como escritor que noticiava, em livros, e em jornais portugueses, a vida de um
europeu “orientalizado”. Entre os seus livros, Paisagens da China e do Japão, de 1906, destaca-se por ter sido dedicado
a dois de seus amigos e antigos colegas de Liceu: Camilo Pessanha e João Vasco.
E, dentre as crônicas e contos publicados no volume, o texto “A Primavera” se
dedicava, exclusivamente, a Pessanha... Datado de 1899, esse texto pode ter
sido publicado, anteriormente, no Commercio
do Porto, periódico que, com freqüência, recebia os textos de Morais, ou em
correspondência pessoal a Camilo Pessanha, o que nos ajudaria a compreender
como uma crônica de 1899 poderia dar origem a um poema escrito em 1896... Toda
a correspondência entre Morais e Pessanha se perdeu, lamentavelmente, e sabemos
que essa correspondência era muito volumosa... Não vemos motivo, portanto, para
levantar celeuma a partir das datas...
Vejamos, então, a crônica:
ela começa com uma exuberante descrição da primavera japonesa, “irrompida”,
“surgida d´um pulo”, “explodida” (MORAIS, 1906, p. 30). O Japão, e, por
extensão, o Oriente, é descrito como um lugar onde todas as “grandes forças
naturais” são “uns selvagens sem freio” e “sem noção das conveniências”, e onde
o europeu, “o pobre europeu das paisagens serenas sofre os choques (...) em seu
espírito triste, meditativo e atribulado” (MORAES, 1906, p. 31-2). O que nos
importa destacar, porém, são os “charcos”, que reaparecerão no poema de
Pessanha:
Pela noite velha, fora chegando uma
brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silêncio das trevas, as
carpas acordaram, num charco
fronteiro ao meu albergue; e estrebuchavam, e produziam desusados ruídos,
saltando fora d´água, ardendo em cios, endemoninhadas (MORAES, 1906, p. 32).
Já ao
longo dos muros espreitam, por entre
as pedras, as violetas silvestres; e
o solo vai vicejar de musgos, fetos, de relvas, de bambus e de humildes
gramíneas; e matizar-se de brancos, de azuis, de amarelos, de escarlates, de
roxos, de mil cores, de mil flores sem nome, apenas conhecidas dos insetos, que
são botânicos eméritos e sabem de cor e salteado onde as corolas lhes oferecem os manjares mais capitosos. Já desabrocham os
junquilhos, as camélias. Vão
desabrochar a wistaria, as azáleas, os lírios,
os íris, os narcisos, os convólvulos, as peônias, a legião vegetal (MORAES,
1906, p. 35).
Pelos
córregos, pelas regueiras, ao longo das ruas e caminhos, surdiam pela primeira
vez das tocas os sapos, rouquejando (MORAES, 1906, p. 39).
Atualizamos a
ortografia, por entendermos que, ao contrário do poema de Pessanha, ela não
serve a fins estéticos, mas
unicamente às normas ortográficas ainda vigentes. O itálico das citações é nosso, e procura pôr em relevo aquilo que
deve ter chamado a atenção de Pessanha, para a construção das imagens do poema...
A primeira parte do
texto descreve, portanto, a “irrupção” da primavera, com as suas flores e os
seus personagens típicos; já uma segunda parte nos leva a ambiente,
aparentemente, sem nenhuma relação com o primeiro:
(...) me engravatei cuidadosamente e
fui bater à porta d´um amigo. Tratava-se duma festa de crianças, o que é dizer,
duma estopada para adultos. Efetivamente, exibia-se, em frente duma dúzia de
meninos, e de outra dúzia de pessoas circunspectas, um grafofone americano;
grafofone, ou coisa parecida; um fone qualquer
em todo caso (...). Introduzia-se numa caixa um cilindro apropriado para o caso
e dava-se corda ao instrumento... mas a quem estou ensinando o padre-nosso!...
Então, um americano fanhoso, embirrante, assim com ares de bêbedo e ademanes de
exibidor de saltimbancos, a ponto de se lhe presumir a casaca no fio e cheia de
nodoas e a gravata branca em uso há mais de seis semanas, falava ao publico,
anunciava a casa construtora em Nova York, e o que em seguida iria ouvir-se (MORAES,
1906, p. 40-1).
Nesse momento,
surge a figura do “fonógrafo”, assim como o “bom jarreta”, o “cômico defunto”,
do poema de Pessanha...
E uma platéia ri,
perdidamente:
(...) Eram cançonetas chulas, solos de
flauta, estrondos de orquestra, devaneios em viola, discursos grotescos; e tudo
aquilo, e as vozes do público que ria, que vociferava, que dava palmas, que
pedia bis, crianças berrando,
damas mal sufocando o riso, cavalheiros atirando chufas, tudo aquilo,
distintamente, saía da caixa enfeitiçada e enchia a sala onde me achava, como
se uma multidão de patuscos, vindos da América, vindos do inferno, a tivesse
invadido de surpresa. (MORAES, 1906, p. 41)
Há um odor a cripta e a pó, do anacrônico assunto:
Agora é o grafofone, que eterniza os
sons, a voz dos de longe, a voz dos que morreram. Morte, ausência, já não tem
razão de existir nos dicionários. Para o caso a que me refiro, cá continua o
americano embirrante a vomitar os seus discursos, os músicos a tocarem, os
cantores a cantarem, o publico a rir, a chorar, a aplaudir, a chalaçar.
Passaram-se assim as cenas há dois anos, há cinco anos, há dez anos. Estará a
estas horas o americano morto, coisa de alguma bebedeira mais forte, que o
prostrou? A criança, que chorava, dormirá também num tumulo, coitadita? A dama,
que ria, estará doida, num asilo? O homem, que aplaudia, num cárcere, cumprindo
uma sentença? Nada importa. A máquina chama-os, reúne-os, ressuscita-os,
renova-os para a pândega dum momento da existência; o passado é presente; e a máquina
agita-os, empurra-os para o interior das nossas casas, para nos divertirmos á
custa deles mesmos... (MORAES, 1906, p. 42-3)
A crônica de Venceslau
de Morais termina por unir os dois assuntos em uma terceira e última parte, onde
supõe a maneira pela qual a modernidade
preservaria os sons da cachoeira de Nunobiki, um lugar irremediavelmente
avariado pela construção da barragem de mesmo nome:
Cilindro apropriado; dá-se corda... A
plebe ouve pouco mais ou menos o seguinte: “Grande companhia de grafofones de
Nova York e de Paris! Cena da famosa cascata de Nunobiki, no Japão!”. E a plebe
continua a ouvir: agora é o murmúrio contínuo, soluçante, de água
despenhando-se de rocha em rocha; trina um pássaro vagabundo (...) (MORAES,
1906, p. 49)
Preservada numa
gravação “grafofônica”: seria esse o destino do conjunto de cachoeiras
denominado Nunobiki, consagrado por
séculos de pintura e de poesia. Normalmente, Venceslau de Morais deploraria
essa “afronta” à “tradição” com argumentos bastante duros, já que era, em
linhas gerais, um conservador; mas, no caso de Nunobiki, limita-se a dizer que
o desaparecimento daquele “poço” era uma lástima, “se é que vale a pena nos
prendermos a ninharias” (MORAIS, 1906, p. 46). Desfaz-se o perigo, sempre
presente, de considerarmos o autor um “reacionário” – o que é fácil, se nos mantemos
presos a uma boa extração de suas obras...
A crônica
apresenta, portanto, o seguinte percurso: da Vida à Morte, e da Morte a uma Sobrevida, que não é das mais desejáveis, mas que o autor encara
com bastante humor... Expliquemo-nos: da “primavera”, que irrompe com as suas
cores e personagens doces e meigos, a uma “festa” de crianças, em que a lástima
da existência humana é exposta por meio do aparelho denominado “grafofone”
(“gramofone”, na verdade). E, dessa “festa” de “mortos”, vamos à sobrevida que
a modernidade oferece até mesmo às
coisas consagradas, como as cachoeiras de Nunobiki. O poema de Pessanha, porém,
apresenta um outro percurso, partindo da Morte,
representada pela reunião social, e pelo “fonógrafo”, e gradativamente nos conduz
à Vida, representada pela irrupção da
“primavera”. Da Vida à Morte, no primeiro caso. Da Morte à Vida, no segundo.
Aqui,
aparentemente, terminam as considerações a fazer entre a crônica e o poema. A
Pessanha, poeta obcecado pela fixação dos instantes, deve ter chamado muito a
atenção o aparelho que torturou Morais... O que nos importa, porém, é fazer um desvio em
direção à última estrofe do “Fonógrafo”, de Pessanha:
Cessou. E, amorosa, a alma das cornetas
Quebrou-se agora orvalhada e velada.
Primavera. Manhã.
Que effluvio de violetas
Consideremos essa
estrofe, com o seu destacado em negrito, e vejamos se não tem relação com esta
frase de Buda, tal como foi traduzida por Guilherme de Almeida: “Alcançarás o
Nirvana quando te tornares insensível como um clarim quebrado: não mais terás
altercações” (ALMEIDA, 1967, p. 114).
No poema de Pessanha,
há uma deliciosa ambigüidade, criada pelo fato de que muitas flores se parecem,
mesmo, a “cornetas” e “clarins”... O que nos chama a atenção, porém, e
obviamente, é o fato de que “a alma das cornetas” se “quebrou”, no “Fonógrafo”,
assim como o “clarim” se “quebra”, na frase de Buda, e ambos produzem um “estado
de Graça” que o primeiro autor não denomina, mas que o segundo chama de Nirvana.
As relações entre
Pessanha e a doutrina budista já foram extensivamente apontadas por muitos
autores, mas nunca foram exaustivamente, nem sequer detidamente estudadas. Não
é o caso de fazermos isso agora; nosso objetivo é, simplesmente, contribuir
para um estudo futuro – nosso, ou alheio. “Fonógrafo”, é claro, está incluído
nessa hipotética investigação, por constituir-se numa espécie de representação
da “fuga” de um mundo convencional, da “quebra de decoro” que nos leva a uma
“verdadeira vida”. O “fonógrafo” torna-se, desse modo, um “símbolo” do
indivíduo que reproduz, em sua mente, os sons da sociedade, as suas idéias, os
seus preconceitos, etc., ao passo que, atingindo o Nirvana, esse mesmo indivíduo deixa de responder às pressões, aos “sopros”
da sociedade, como um clarim que, apesar de poder ser manuseado e soprado, não
emite som algum, por estar quebrado, inutilizado para esse fim...
A lenda nos diz
que Buda alcançou a sua “Iluminação” espiritual na manhã do oitavo dia de suas
meditações... Foi naquela “manhã” que deixou, definitivamente, o mundo dos
“mortos”, e conheceu a Vida. Já não era mais
facilmente tocado pelo que o rodeava, como a maior parte dos homens o é, nem
reproduzia mais as emoções com a assombrosa facilidade com que o fazemos.
Tornou-se capaz de não reagir às sugestões do mundo, atingindo tal estado de
“firmeza mental”, que se viu transformado, segundo a expressão de Borges, em
uma “ilha em meio à tempestade” (BORGES, 1983).
Tal era o objetivo
de Camilo Pessanha, perseguido repetidamente, em poemas como “Inscrição”, por
exemplo. Há, é claro, muita semelhança entre o “desejo de aniquilamento”, de
“silêncio”, de “não-vida”, em Pessanha, e o Nirvana
búdico. Mas, como já foi apontado por diversos autores, inclusive por Ester de
Lemos, autora de um dos estudos fundamentais a respeito da obra do poeta
português, esse desejo de “impassibilidade” não se concretiza “budicamente”, em
Pessanha, por faltar, ao poeta, o objetivo “religioso” imprescindível à
obtenção de tal estado; em outras palavras, a busca de “tranqüilidade”, em
Pessanha, baseava-se num desespero,
mais do que numa fé religiosa, o que
torna o seu “desejo de aniquilamento” mais um “suicídio” do que um “estado
nirvânico” propriamente dito. Há, indiscutivelmente, “budismo”, em Pessanha. Mas,
um “budismo” que encontra um homem do século XIX europeu, às voltas com uma
educação positivista, colonialista, cientificista, e materialista; um homem, ao
mesmo tempo, excessivamente apegado às imagens do seu passado, e de sua
infância; excessivamente amoroso para ser o “funcionário ideal” do Estado,
despido de sentimentalidade, frio e analítico; mas, também, excessivamente
impregnado desses “ideais”, para ser um autêntico “religioso”.
Concluímos essa
passagem rogando por mais estudos que contemplem a faceta budista de Camilo
Pessanha. Acreditamos que isso nos daria a oportunidade de percebermos uma
passagem fundamental da vida no Ocidente, quando, inadvertidamente, penetramos
no Oriente com o espírito missionário, obtendo, ao invés de obediência, lições
preciosas a respeito de nós mesmos, assim como Roma se impregnou da Grécia, ao
invés de submetê-la. Um último dado, porém, falta ao nosso estudo. Trata-se de
uma chave de interpretação, que nos é dada pela crônica de Morais. Vejamos que,
na terceira parte de seu texto, ao comentar a respeito da cachoeira de
Nunobiki, o autor menciona a casa de chás, que funcionava contiguamente à
cachoeira principal (que ele denomina, simplesmente, “o poço”). Duas atendentes
trabalhavam nessa casa de chás, e uma delas se chamava “Senhora Primavera”. Primavera
havia falecido... E, ao autor, não escapa a ambigüidade criada pela “Primavera”
que “irrompe”, na primeira parte de seu texto, e a “Primavera” que morre, no
final da crônica... O interessante, porém, é que, na passagem em que Morais
descreve a gravação, para a posteridade,
da cachoeira de Nunobiki, a moça apareça, nestes termos:
(...) a plebe continua a ouvir: é agora
o murmúrio contínuo, soluçante, de água despenhando-se de rocha em rocha; trina
um pássaro vagabundo; um francês bate as palmas, pede cerveja; um inglês pede
whisky; um nipônico pede chá; a voz da Senhora Primavera vibra distinta,
fresca, doce; Primavera desfaz-se em desculpas, em risinhos, diz que já vai,
não tarda; mas o inglês tem pressa, renova o seu pedido com azedume; e o instrumento
é então perfeito – oh, maravilha da ciência! – que se ouve até o ciciar dum
beijo, que é naturalmente do francês... (MORAES, 1906, p. 49)
Isso nos dá uma
chave de interpretação, que é a seguinte: partida, já, de um mundo feito
“anacrônico”, e de uma platéia que ri, já, “perdidamente”; partida de entre
aqueles que, para si, já são apenas “cômicos defuntos”, a Senhora Primavera se
encontra em êxtase, sobre o paúl de lembranças, de reminiscências da sua vida
recém-deixada; flutua diante da Lua, e ouve-se, então, uma barcarola (que
diferença do que se ouvia na casa de chás!...). Em seguida, vêm os sons
estridentes de uma antemanhã, e as sensações vívidas, que conduzem ao florescer
silencioso de todas as violetas, que já espreitavam, pelos muros, e que colorem,
agora, o caminho à Verdadeira Vida.
Senhora Primavera irrompeu... Rompeu-se. Nasceu, verdadeiramente...
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro : Ediouro, 1967.
BORGES, Jorge Luís. O budismo. In : _____. Sete
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SILVEIRA, Pedro da. Clepsidra e outros poemas –
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Lisboa : Lusitania, 1920.
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Campinas (SP) : Unicamp, 1994.
Nunobiki, cachoeira principal, 189?