sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Continuação do Gato Preto

Tal como nos foi contada por um velho, na mesa do bar, citando um obscuro Tratado geral do bilhar, de autoria desconhecida, mas atribuído a um certo Valdecyr Cosme dos Santos, lenda do jogo.

Antes, deixe-me fazer o retrospecto da história do Gato Preto, tal como foi contada por Edgar Allan Poe. A história é a seguinte: um sujeito gostava muito de animais; era apaixonado por eles; mas, um dia, ele recolhe do bar um animal preto, um gato que ali passava, e que parecia pedir: “Me leve pra casa!”

Pois bem, esse homem recolhe o gato e o leva pra casa, para se juntar à turma de coelhos, tartarugas, cachorros, passarinhos. E tudo parece normal, por uns dois dias.

Aos poucos, o homem vai se sentindo diferente. Azedo; amargo; nojento; e tudo sem qualquer causa aparente. Começa a maltratar seus bichinhos. Faz judiação. E até maltrata a esposa, que não entende o que está acontecendo, nem entende o porquê de ele começou a beber.

O gato preto, porém, era o objeto preferido da fúria do homem. Quando a esposa faleceu, vítima do machado do marido, faleceu porque ia defender o bichinho, e foi emparedada com cimento, na parede do porão.

Julgando-se esperto, o sujeito leva a polícia até o porão, um dia, para demonstrar que ninguém precisa mesmo suspeitar de si. Mas a polícia, assim que está indo embora, ouve um miado vindo da parede. O assassino começa a suar frio e a tremer. E a polícia, cavando a parede, descobre um gato, vivo, miando sobre a cabeça do cadáver da mulher.

História assombrosa. Mais assombrosa ainda, porque é o próprio delinqüente quem nos conta os detalhes de sua loucura, e faz daquele gato preto um símbolo do mal que inocentemente levamos conosco pra casa, mas que tem os seus efeitos desastrosos.

Bem, a história terminaria aqui; entretanto, o Tratado geral do bilhar diz o seguinte:

TRATADO GERAL DO BILHAR

Capítulo III, “A bola oito”

Diz a lenda que, depois da prisão do seu dono, e depois do triste enterro da bondade, sacrificada como um boi de sacrifício aos demônios infernais de seu marido, o Gato Preto foi recolhido à Delegacia, onde recebeu a atenção das senhoras da Associação Protetora e comoveu as pessoas por meio de inocentes manchetes nos jornais, onde estampavam a foto do bichinho por meio de palavras doces. Todos estavam mancomunados sem saberem; até o Prefeito veio demagogar sua presença ao lado das elogiadas senhoras da sociedade. E ali estava o bichano. Preto. Poucas pessoas percebiam a verdade. Até que um dia, um homem percebeu que o seu vício no jogo de sinuca tinha a ver com a bola preta. A única preta, no vasto gramado de bolas coloridas. É que ela lembra... Negramente, o Infinito, rodando, ou estancando-se... Eu sei, tudo isso é incoerente. Sim, eu sei, são as superstições... Mas há um olho para ver o mal. E é triste de ver... É nessas horas que o gato preto se torna bom... Sim, eu sei...

O fato é que o Gato Preto continua em seu telhado calmo à lua; a bola preta rola pelo gramado livremente; e, em noites só de lua, a noite é estar dentro de uma grande bola preta, com uma certa nuvem branca.

Misterioso parágrafo, que nos foi contado exatamente, e com muita reverência, posteriormente, pelo Sr. Alcínoo Campobello, naquela noite de tempestade, que seguirei contando agora:

Íamos pela estrada, e discutíamos Goethe.

Zum sehen geboren

Zum schauen bestellt

Que o dicionário eletrônico traduziu tão lindamente para o Inglês:

To sees born

To looks ordered

Ah, é tão lindo, se colocado no contexto da contemplação! Como poderíamos traduzir para nossa língua? Talvez:

Para as vistas nascido

Para os olhares mandado

Discutíamos Goethe e outros poetas alemães, naquela noite em que meu amigo me acompanhava na obrigação de ir até uma cidade. A noite era tempestuosa, desde que saíramos de casa. Na estrada de asfalto, as nuvens se moviam pesadamente enquanto passávamos o mais rápido possível para escapar da chuva em pleno caminho, e falávamos dos poetas alemães como se tivesse surgido, o assunto, da própria noite. Não haveria nada mais adequado àquele momento, do que discutir justamente esses assuntos tempestuosos, furiosos, naturais.

Mas o fato é que a chuva nos pegou no meio da estrada, e, sem ver um palmo à frente, tivemos de interromper o assunto e pegar o atalho que ia à cidade de X... Foi esse atalho que surgiu miraculosamente, quando a única opção seria levar o carro para o acostamento e desliga-lo até a visibilidade melhorar, o que teríamos de fazer, mesmo que a beira da estrada se descobrisse, depois, um despenhadeiro. Graças a Deus, o trevo de X... surgiu e tomamos o caminho da cidadezinha, que estava encharcada, repleta de rios grossos correndo às calçadas e ao meio das ruas, mas que, ao menos, não oferecia o perigo que ainda há pouco corríamos.

Procuramos um lugar para ficar ao abrigo da chuva; um lugar onde pudéssemos andar livremente e fumar. E encontramos, depois de uma certa procura, um bar.

A porta estava aberta, escura, negra, e algumas formas denunciavam que havia pessoas ali. Ótimo, pensamos.

Entramos no bar, levando um pouco de chuva nas costas, e esperamos a melhora.

Enquanto isso, acompanhávamos a conversa baixa de alguns homens. Fui ligar para casa, avisando que estava tudo bem, mas o telefone não funcionou – o telefone público. E tivemos de ficar, assim, à espera de que o blecaute (o apagão) se acendesse.

Muito tempo depois, subitamente, a luz acendeu. O que vimos, deixe-lhes contar, foi espantoso: estávamos num lugar como que transportados à década de 1930 ou 1940, no máximo 1950. Penduricalhos de peixes secos, que ainda pareciam vivos, piranhas do Mato Grosso, com a boquinha aberta, as serrinhas nos dentes, e outros espécimes que enfeitavam vários cantos do recinto. Hoje em dia, isso me lembra a igreja de Moby Dick: toda enfeitada de coisas de baleia. Os caçadores de nossos dias, desses dias brasileiros e antigamente bandeirantes, usam enfeitar-se com suas caçadas nos rios. Mas ainda havia outras coisas: uma estante, enorme, além do balcão, repleta de garrafas enfileiradas e antiqüíssimas, de aguardentes que meu avô devia beber, quando moço, com seus amigos, rótulos gastos e, em minha imaginação, a estante toda tinha enfeites de teia de aranha e pó, com pingentes e imagens de santinhos, santos, santões, vermelhinhos, azuis e brancos, sei lá, eu me lembro de ciscos de cor naquela exposição de antiguidades populares em tom pastel. Todo o bar, iluminado ainda por uma lâmpada da antigüidade pesqueira e lavradora, que ficava ali no teto, pendurada das vigas de madeira, todo o bar, dizia eu, era antigo, até às mesas e o chão. Seus habitantes ocasionais não eram menos trazidos do tempo: eram velhinhos que minha lembrança, hoje em dia, retrata como sendo os fundadores de nossa região. Todos eles envoltos em mistério.

O dono do bar era uma figura a que todos chamavam Cigano. Foi ele quem nos vendeu, do freezer de quando eu era criança e do século passado que era o balcão de madeira e vidro, uma cerveja nova e paçoquinhas, cortadas de um bloco inteiro, e servidas em papel de padaria.

Explicou alguma coisa sobre o apagão, contou alguma piada, que meu amigo ouviu, enquanto eu ainda me espantava de estar na década de 1950, e nos vendeu duas fichas de sinuca, que fomos jogar nos fundos do bar, como antigamente – quando o jogo era proibido.

Lá nos fundos, as duas mesas ficavam numa varanda, que dava diretamente para o grande quintal de pomar e galinhas, de onde podíamos ver o muro que dava para a rua, lá onde um poste de luz amarela acendeu. Por causa da luz do poste, víamos caírem as gotas lavradas de chuva, como de um diamante lapidado e finamente desbastado. O lugar era perfeito para jogar, para beber enquanto se jogava, e para fumar livremente enquanto se conversava, acrescentando ao fumo inalado aquele cheiro de terra molhada e desagradável. Logo, viemos ter companhia, depois de alguns lances e alguns copos de cerveja. Eram dois homens, dois velhos, nem velhos eram, eram quase velhos, ou eram velhos magrinhos e muito fortes, que entraram conversando, e sentaram-se a conversar. Um deles, de bigode branco e rosto muito marrom, cabelinho branco aparecendo do chapéu, camisa arregaçada até o meio do braço, ficou olhando para nós, certa hora, em silêncio de quem vai falar, e mexia os dedos juntos das mãos, com os cotovelos apoiados ao joelho dobrado sobre a perna. Seu companheiro silenciou, sabendo que o outro ia falar, e o que ia falar. Soubemos disso, e esperamos. Até que ele falou a respeito do Tratado geral do bilhar, coisas que não vou contar aqui, para não alongar demais a história, e para não contar mais do que me é permitido. Além disso, o Tratado geral do bilhar, quase mitológico grimoire da sinuca, foi apenas a introdução de uma outra história; apenas o pretexto para se contar a terrível história do Lorde Papagaio. Terrível não sei se é, mas a curiosa, interessante, singular história do Lorde Papagaio...

Tem muito a ver com Edgar Allan Poe, o autor já citado. Mas talvez tenha menos a ver com o Gato Preto, e muito mais a ver com O Corvo...

O Corvo – disse-me o velhinho – é aquela história do homem que fica viúvo e, algum tempo depois, numa noite escura de esquecimento, tenebrosa, fúnebre de nuvens e de lua, recebe a visita de um passarinho agourento, preto que nem carvão, que vem entrando pela janela que o outro abriu, achando que era só o vento que estava fazendo barulho, mas era o passarinho que estava tentando entrar. Bateu na porta, bateu na janela, e quando o homem abriu, tentando acreditar que era só o vento, o passarinho entrou e foi pousar lá no alto do quarto, em cima de uma imagem que ele tinha no quarto. Aí o passarinho ficou quieto, e o homem já sabia o que o passarinho tinha ido fazer lá, só que estava com medo e queria que o bicho fosse embora. A cada pergunta, a cada coisa que o homem perguntava, dizia o passarinho: “Nunca mais!”. Foi dizendo isso, até que o homem caiu em desespero; pra sempre o passarinho ficou lá, dizendo que nunca mais ele ia ver a amada de seu coração, e o homem ficou, assim, entregue à amargura de ser um sempre viúvo.

Coisa triste... Mas, agora, o senhor repare naquele outro passarinho ali.

– e me apontou uma parede, ao canto esquerdo da porta da entrada do bar, onde ficava uma mesa e duas cadeiras.

Repare bem, disse-me ele, (e o outro, seu companheiro, ajeitou-se na cadeira com espalhafato de quem se ajeita espantando o ar antigo para se preparar para um novo, de olhos baixos no chão), repare bem lá no alto, aquele desenhão de papagaio, está vendo?..

E eu vi, um papagaio enorme, enorme não, muito grande, de terninho marrom, com um cachimbinho na boca, aceso. Seus pés (!) estavam calçados com sapatinho chique, de couro, e um dos pés estava sobre uma bola de futebol. Sua pose era a de quem dominou a bola. As mãos (!) estavam nos bolsos do paletó. Seu sorriso era alegre como de um Zé Carioca posto num terno à inglesa, com direito a coletinho branco e gravata preta. Via-se ele de perfil, o sapato sobre a bola, as mãos nos bolsos do paletó, o olhar alegre, o cachimbo aceso, de pé, como um vencedor elegante.

Ora, identifiquei, na hora, quem era. Era o símbolo do Palmeiras, clube do coração de muitos do Interior, principalmente dos descendentes de italianos, como devia ser o caso do Cigano. Esse símbolo, pintado como um afresco no interior dos bares, eu já tinha visto muito em minha vida. Lembrava-me o meu avô, de quando ele me levava aos bares de bocha, de pinga, de sinuca, de truco, e me comprava uma salsicha curtida em vinagre ou um pastel salgado, ou um doce colorido de geléia, e o domingo era claríssimo.

Repare melhor, disse o velho, sorrindo (o outro, seu companheiro, levantou os olhos, ficando na mesma posição, com as mãos juntas no meio dos joelhos e as pernas estendidas).

Então nós vimos, conjuntamente, três furos de bala de revólver, bem no peito do papagaio...

Quem fez isso?

Sabe quem fez isso? Sabe por que se fez isso? Eu vou lhes contar

Então ele pigarreou de lado, e nos contou

A História do Lorde Papagaio

Estava um homem, certo dia, talvez um domingo de sol, antes do almoço, tomando sua pinga, sentado bem ali, sob o Lorde Papagaio, quando, depois de muito tempo sozinho, começou a se enervar. Quem estava meio longe podia ver muito bem que ele conversava e discutia com o passarinho pintado na parede. Depois de algum tempo é que foram notar que o caso era grave. Depois de muito tempo, na verdade, porque o homem era dado a ficar nervoso, quando bebia, e se enervava contra os políticos, saía falando do time pelo meio da rua, falava de não sei quens; e não fazia mal a ninguém, só perdia o controle da língua. Mas, naquele dia, todos viram que o caso era sério, quando ele se levantou, e; não é mesmo Cigano?... Tô contando aqui pros menino a história do Lorde Papagaio!... (é verdade, balançou seriamente a cabeça o Cigano). Então, o homem, juro por Deus, levantou, começou a berrar que “Você não sabe de nada!”, “Você é um mentiroso!”, “Já falei pra parar!”, e sacou do revórve, deu três tiro no Lorde Papagaio, e saiu correndo, destrambelhado e desesperado, pela rua. O sangue escorreu pela parede, fininho e arenoso, dos três buraquinhos na massa da parede, e fez uma pocinha de pó espalhada no chão. Nunca, ninguém soube qual foi a discussão entre os dois, mas uma tia dele, duas tias dele, três tias dele, na verdade, velhinhas, que acompanharam seus últimos dias, contaram esta história, a seguinte, tal como vamos contar agora, como se o próprio assassino a estivesse contando:

“Depois que matei o Lorde Papagaio, e fez-se aquele alvoroço na cidade, fui levado à Delegacia, abriu-se inquérito, mas o delegado fez logo arquivar o caso, pois havia indícios de que o Papagaio era culpado. Além disso, eu tinha que fazer uns exames lá, pra verificar que eu estava louco, e disseram que era melhor nem fazer. Abafaram o caso, judicialmente. Mas, nos dias que se seguiram, fiquei lembrando daquele maldito, com aquela carinha de inocente, dizendo pra mim: “Nunca mais!...”.

“Nunca mais o quê?, ô palhaço...”

“Nunca mais...”

Aí eu olhava pra ele, tentava disfarçar, tentei levar a conversa pra algum outro lado, depois fiz mesma coisa, e o olhar... O olhar do bicho... Só olhar já dizia: “Nunca mais!...”

Eu não estava triste! Quando cheguei no bar, estava até alegre. Foi só sentar naquela mesa, prestar atenção no Lorde Papagaio, e o olhar... meu Deus, aquele olhar!... com aquele cachimbo maldito soltando fumacinha, parecia me dizer: “Não... Você tenta se esquecer... Você acha que ninguém sabe... Você acha que pode enganar todo mundo... Mas eu sei!...”

“Doutor, eu nem sabia que ela me fazia tanta falta. Já tinha esquecido, ela já era sombra desaparecida, mas ELE!... AQUELE MALDITO PAPAGAIO!... me LEMBRAVA!... POR QUE FUI OUVIR AQUELA VOZ, MEU DEUS, POR QUÊ?!!...”

E foi assim que a história do Corvo se repetiu, num bar distante do Interior de São Paulo, insuspeitavelmente, anonimamente para o resto do mundo, que continuava girando, os carros passando nas grandes cidades, eventos naturais acontecendo em outros países, todos alheios a esse crime que chocou uma humanidade.

Depois de ouvirmos a história, os olhos do Cigano fixavam-se sobre nós, os dois homens que restaram nas mesas do bar ficaram olhando para nós, e os dois velhos que nos contaram a história ficaram esperando de nós uma resposta. Levantei-me da cadeira, caminhei até o Lorde Papagaio, e disse-lhe: “Seja lá o que aconteceu, sei que tua alma descansa com a de meus avós: as lembranças de minha infância.” Fiz o sinal da cruz, despedimo-nos dos homens do bar, e partimos pela noite, já sem aquela chuva.

Incoerências acontecem. Assim é que termino a terrível história do Lorde Papagaio, dizendo, como me disse o velhinho, assim que entramos no carro: “Não tenha dó, não; cada um tem as suas próprias e assombrosas histórias, e Deus há-de saber quais são as clarezas de nossos mistérios. Fausto foi um gênio criado por Goethe, um gênio ambicioso de todo conhecimento, que vendeu a alma ao diabo para consegui-lo. Não sejamos como Fausto. Que Deus, apenas, saiba os mistérios dessa nossa vida tortuosa.”

Nascidos para ver, mandados para olhar, depois de ouvirmos toda a história, saímos sem nem fazer a promessa de não falarmos mais nesse assunto.

Simplesmente, ligamos o carro, e partimos.

Já não chovia mais.

II

E o Gato Preto...? Bem,

como disse o antigo livro de ciências ancestrais, já citado anteriormente, o Gato Preto continua sua vida como se nada tivesse acontecido. Sai para namorar, come na casa dos outros, passeia à noite, com verão e dama-da-noite. Ninguém lhe imputou nenhum crime. Vejo-o constantemente. Foi um herói coitadinho. Ninguém suspeita que ele veio das chamas e das sombras do Inferno.

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