sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O SONHO DA CÂMARA VERMELHA

Cao Xueqin

" Caro leitor, qual teria sido a origem deste livro, poderias me perguntar. Embora a resposta pareça absurda, há nela muito mais do que parece à primeira vista.

Há muito tempo atrás, enquanto consertava o céu, a deusa Nu-wa derreteu uma grande quantidade de rocha e moldou, nos Precipícios Incríveis das Grandes Montanhas Fabulosas, trinta e seis mil quinhentos e um grandes tijolos, dos quais usou trinta e seis mil e quinhentos, deixando um deles sozinho, aos pés da Montanha da Palidez.

Esse bloco, tendo passado pelas mãos de uma deusa, possui poderes mágicos. Pode-se mover à própria vontade, e pode aumentar ou diminuir de tamanho o quanto quiser. Vendo que todos os outros blocos foram usados nos reparos celestes, e vendo que tinha sido rejeitado como desnecessário, tomou-se de vergonha e de ressentimento, e passou os seus dias em lamentos e tristeza.

Até que, certo dia, no meio de suas lamentações, viu um monge e um taoista que se aproximavam desde uma grande distância, cada qual notável por certas excentricidades de maneira ou de aparência. Quando eles chegaram aos pés da Montanha da Palidez, sentaram-se e começaram a conversar. O monge, vendo uma pedra translúcida e lustrosa – que era, na verdade, o bloco rejeitado do céu, que diminuira de tamanho e que parecia muito atraente em seu novo formato – pegou-a na palma da mão e disse, sorrindo:

“Ah! Vejo que tens propriedades mágicas! Mas não há nada que te recomende!... Deverei entalhar-lhe, então, umas palavras, de modo que qualquer pessoa que a veja saiba, de imediato, que és especial. Depois disso, levar-te-ei a um certo local

brilhante

bem-sucedido

poético

culto

aristocrático

elegante

deleitável

luxuoso

opulento,

em apenas uma pequena viagem.”

A Pedra ficou lisonjeada.

“Que palavras entalharás em mim? Onde fica esse lugar aonde me levarás? Peço que me expliques, por favor!”

“Não perguntes”, disse o monge, rindo. “Saberás quando o tempo chegar.”

Então, o monge guardou a Pedra em seu roupão, e partiu, com o taoista, a lugar que não tenho a menor idéia de onde seja.

Muitos séculos se passaram, até que um certo Vanitas, que partia em busca do segredo da imortalidade, calhou de passar pela mesma Montanha da Palidez, nos Despenhadeiros Incríveis das Grandes Montanhas Fabulosas, e viu uma larga pedra, na qual estava inscrito um longo texto que era claramente discernível. Vanitas o leu completamente, e entendeu que aquela pedra tinha sido, um dia, rejeitada no conserto do céu, mas que havia magicamente diminuído de tamanho e foi levada pelo monge budista Impermeável e pelo iluminado taoista Misterioso ao mundo dos mortais, onde viveu a vida de um homem, antes de, finalmente, atingir o Nirvana e voltar a este lado. A inscrição nomeava o país onde nascera, e dava detalhes consideráveis de sua vida doméstica, de seus amores de adolescência, e registrava mesmo os versos, motos e parlendas que compusera. Apenas o que faltava era a data. Atrás da pedra, lia-se esta quadrinha:

Considerada inadequada para reparar o céu azul

Longos anos um tolo mortal fui eu.

Minha vida em ambos os mundos aqui está escrito:

Peço que alguém copie e publique.

Dessa leitura, Vanitas percebeu que aquela pedra era de alguma consequencia. Assim, dirigiu-se a ela desta forma:

“Irmã Pedra, de acordo com o que percebo nestes versos, tua história contém matéria suficientemente interessante para merecer publicação, e com esse objetivo foi entalhada. Mas, tanto quanto posso ver, não há nenhuma data discernível, e tua narrativa não contém exemplos de grandeza moral. Não há mensagem social de tipo algum. Tudo o que encontro, na verdade, é um sem-número de mulheres que se interessam, no máximo, por suas paixões e tolices, ou por algum pequeno talento, ou por alguma insignificante virtude. Mesmo que eu copiasse a tua história, não vejo como ela poderia se tornar um livro memorável.”

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